Biocombustíveis de palma: características e perspectivas no Brasil

Por que a palma é estratégica para combustíveis avançados

A produção de óleo de palma gera, de forma inevitável, correntes residuais com teor de óleo recuperável: o efluente de usina (Palm Oil Mill Effluent, POME), os cachos vazios (Empty Fruit Bunches, EFB) e as fibras prensadas do mesocarpo (Pressed Palm Fibers, PPF). As orientações ISCC classificam POME, EFB e PPF — e os óleos recuperados dessas correntes — como matérias-primas listadas no Anexo IX Parte A da RED II, elegíveis às metas obrigatórias de biocombustíveis avançados na UE (3,5% até 2030) e, portanto, com forte valor regulatório e de mercado.

O que é POME, EFB e PPF — e por que isso importa

  • POME é a água residuária inevitável da usina de palma; contém principalmente água, mais pequenas frações de óleo e sólidos. Apenas o óleo recuperado do POME pode ser rotulado como POME oil; confundir com PFAD, CPO de alta acidez ou “acid oil” constitui violação crítica.
  • EFBs são os cachos vazios após a retirada dos frutos. Podem passar por tratamento (ex.: EFB screw press) que extrai um “licor” do qual se recupera o EFB oil; rotulagens indevidas também são vedadas.
  • PPF são fibras prensadas remanescentes, usualmente usadas como combustível na própria usina; delas se pode recuperar PPF oil antes da queima, com regras de rotulagem idênticas.

Bônus climático no “ponto de origem”

Uma particularidade crucial para o balanço de GEE: o óleo recuperado de POME, EFB e PPF na usina é considerado com emissões de GEE iguais a zero no ponto de origem. Como a RED II não traz valores default para esses caminhos, os elos seguintes (transporte, processamento, refino) devem calcular emissões reais. Isso sustenta intensidades de carbono competitivas para HVO/SAF quando a logística é bem gerida.

Riscos, auditorias e rastreabilidade: o que mudou com o ISCC v3.1

Para evitar “produção deliberada de resíduos” ou a declaração fraudulenta de óleos virgens como óleos de resíduo, o ISCC reforça a verificação no ponto de origem e determina responsabilidades claras do auditor.

A versão 3.1 (válida desde 29/04/2024) revogou a abordagem de amostragem para usinas de palma: toda usina que gere e forneça POME/EFB/PPF como sustentável deve ser auditada anualmente e possuir certificação individual como ponto de origem. Não é permitido o “agrupamento por amostra” típico de outros pontos de origem.

O guia do ISCC detalha ainda checklists de auditoria: capacidade de produção, FFB processados no período, tipo de esterilizador, tecnologia de recuperação (do “lago” ou in-line), volumes gerados por fluxo (POME/EFB/PPF), tratamento posterior (com perdas), frequência de coletas, SDs emitidas e reconciliação com outros esquemas (RSPO, sistema nacional italiano etc.) para evitar dupla contagem.

Plausibilidade técnica e limites razoáveis

A recuperação por escumação em lagoas tende a ser menos eficiente que tecnologias antes da lagoa (ex.: centrífugas); auditorias exigem conferir se volumes reportados se mantêm em faixas plausíveis. O próprio guia traz um exemplo: para 250.000 t/ano de FFB com esterilizador horizontal, POME oil plausível varia de ~525 a ~1.900 t/ano dependendo do método aplicado.

Caminhos tecnológicos e rotas de produto

Óleos de POME/EFB/PPF, quando corretamente segregados e certificados, alimentam rotas HEFA/HVO (diesel renovável, SAF) com alto potencial de abatimento de GEE. O valor de mercado vem do “status” Anexo IX A (elegibilidade para metas de avançados) aliado ao zero no ponto de origem, mas a competitividade depende de logística de coleta, desaguamento/decantação eficientes, controle de perdas, qualidade (FFA, umidade) e da capacidade da biorrefinaria de processar correntes com variabilidade.

Perspectivas no Brasil: onde podemos ganhar vantagem

O Brasil reúne três fatores favoráveis para biocombustíveis de palma no Brasil:

  1. Matriz regulatória pró-avançados: produtores que visam UE podem ancorar projetos nos requisitos ISCC/RED II, explorando o status de avançado de POME/EFB/PPF e o “zero no ponto de origem”, desde que cumpram a auditoria individual e a rastreabilidade reforçada.
  2. Integração agroindustrial: usinas que já queimam fibras e retornam EFB ao campo podem agregar valor capturando óleo residual desses fluxos (antes da queima/compostagem), mantendo as práticas agronômicas (mulch) e direcionando o óleo recuperado ao mercado de HVO/SAF. O guia ISCC reconhece que EFB tradicionalmente é queimado ou deixado em pilhas (com risco de emissões por compostagem não controlada), mas que tecnologias de secagem/extração elevam a eficiência e permitem mensurar o óleo obtido.
  3. Mercado internacional aquecido: a meta de 3,5% de avançados na UE até 2030 deve manter prêmios para matérias-primas do Anexo IX A — oportunidade clara para plantas brasileiras que consigam padronizar qualidade, comprovar origem e evitar qualquer mistura/rotulagem indevida (POME/EFB/PPF ≠ CPO/PFAD).

O que fazer na prática

  • Mapear e quantificar: medir volumes de POME, EFB e PPF, com balanços de massa e perdas do tratamento (decantação/centrifugação), e estabelecer armazenagem segregada.
  • Escolher tecnologias de recuperação: in-line (centrífugas/decanters) elevam a taxa de captura frente à escumação em lagoas; isso precisa aparecer na evidência de auditoria e nos volumes plausíveis.
  • Fechar a governança: certificados ISCC individuais por usina, SDs consistentes, verificação de terceiros e reconciliação com outros esquemas para blindar contra dupla contagem.
  • Planejar a rota de mercado: direcionar POME/EFB/PPF oil para HEFA/HVO/SAF com parceiros que aceitam variação de qualidade e reconhecem o diferencial regulatório do Anexo IX A e do “zero no ponto de origem”.

Principais desafios a mitigar

  • Qualidade e consistência: umidade, sólidos e FFA pedem padronização de pré-tratamento.
  • Cadeia de custódia: rotulagem errada (ex.: vender PFAD como POME oil) é violação crítica; treinamento e controles são indispensáveis.
  • Auditoria mais intensa: com a revogação da amostragem, cada usina precisa estar pronta para auditoria anual in loco e para defender plausibilidade de rendimentos frente ao desenho do processo (horizontal/vertical, in-line vs lago).

Conclusão Resíduos de usinas de óleo de palma oferecem uma rota robusta para biocombustíveis de palma no Brasil quando vistos pelo prisma ISCC/RED II: elegibilidade como avançados, zero emissões no ponto de origem, e um arcabouço de auditoria que protege integridade e cria confiança de mercado. Para capturar o prêmio, o setor precisa combinar engenharia de processo (recuperação eficiente, perdas controladas) com excelência em conformidade (certificação individual, massa e documentos à prova de auditoria). Com essa base, as biorrefinarias podem transformar POME/EFB/PPF oil em HVO e SAF, conectando a agroindústria brasileira a um mercado internacional em expansão e elevando a oferta de combustíveis de baixa intensidade de carbono.

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