Quando se trata do tema de relações de consumo consciente, há uma crescente inquietação quanto ao caminho percorrido pelo produto até o consumidor final, as fontes de matéria-prima utilizadas, as formas de trabalho empregadas, entre outras preocupações. O consumidor adquiriu o novo papel de questionar e investigar produtores e empresas. Estes, por sua vez, buscam formas de conquistar a confiança de quem compra. Mas como fazer isso? A certificação e o rastreamento são algumas das respostas.
Entre os novos hábitos de consumo consciente, destaca-se o de alimentos orgânicos, que já movimenta mais de R$ 3 bilhões anualmente e cresce a taxas de 20% a 30% ao ano, segundo o Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável (Organis). Verduras, legumes, frutas e cereais são os produtos mais representativos no setor, ainda de acordo com o Organis.
Por influência de grupos organizados da sociedade civil e de produtores, o consumo de orgânicos entrou na pauta no governo. No município de São Paulo, por exemplo, a lei nº 16.140/2015 torna obrigatória a presença de alimentos orgânicos na merenda escolar.
De acordo com Heloisa Bio Ribeiro, da Associação de Agricultura Orgânica (AAO), a lei nasceu de uma articulação da sociedade civil com o Legislativo. Segundo ela, a meta é de que 100% das refeições contenham orgânicos até 2026, o que representará 2,5 milhões de refeições por dia, gerando grande impacto positivo para a saúde das crianças e para o mercado. “Trata-se de uma lei que não é de mandato específico de um prefeito, e sim de uma construção histórica. No entanto, a atual gestão praticamente interrompeu a implantação da lei”, afirma.
Consumidores da feira de orgânicos do Ibirapuera, em São Paulo, apontam a questão da saúde e do meio ambiente como os principais fatores da escolha. Lívia Menezes, por exemplo, aponta a crescente disseminação de informações mostrando os males causados pelos agrotóxicos. “É espantoso como muitas substâncias proibidas em outros países ainda sejam permitidas aqui”, diz. Além do aspecto da saúde, Mariana Cüry, frequentadora da feira há cinco anos, menciona como fator da escolha a forma de manejo do solo, o cuidado com a terra e o respeito a natureza na produção dos orgânicos, mas acredita que poucas pessoas têm a consciência disso (saiba a seguir o que as consumidoras pensam a respeito dos selos).
A procura por produtos mais sustentáveis vai além dos produtos orgânicos, atingindo outros setores e afetando como as empresas lidam com a responsabilidade quanto à origem dos produtos e às suas condições de produção. Empresas de cosméticos, produtos alimentícios e até marcas de roupas estão buscando a certificação e rastreabilidade de suas cadeias de produtivas, buscando maior controle e mitigação de riscos.
A Natura, por exemplo, que produz e comercializa produtos de beleza e cuidados pessoais com matéria-prima brasileira, detém a sua própria certificação para garantir a qualidade do seu produto final e condições adequadas para o seu produtor. “Buscamos a estabilidade da nossa cadeia de fornecimento por uma questão de gerenciamento de riscos. Tendo a clareza e a transparência da nossa cadeia é que conseguimos verificar onde estamos com risco de fornecimento e até de condições de trabalho”, diz João Teixeira, coordenador sênior de Sustentabilidade da Natura.
Segundo ele, a empresa apoia o pequeno produtor não apenas para certificar a matéria-prima de que precisa para produzir, mas também realiza um papel de formação, instrução e apoio a projetos de desenvolvimento local e infraestrutura. O acompanhamento é feito a produtores selecionados da região amazônica brasileira desde 2000 com o lançamento da linha da Natura Ekos, que utiliza insumos da sociobiodiversidade da região. São beneficiadas 5.296 famílias, segundo dados do relatório anual da Natura de 2017, e o plano é que sejam 10 mil até 2020.
“No começo, parecia uma espécie de ‘pedágio’, sendo um trabalho a mais para que eles [produtores] pudessem atender aos requisitos da empresa. Mas, com o tempo, nós conseguimos passar a informação de que o cuidado com a terra é importante para proporcionar a eles um comércio sustentável”, conta o coordenador de suprimentos, André Santos de Freitas, que trabalha na área de Gerência de Relacionamento e Abastecimento da Sociobiodiversidade da Natura em Belém e realiza as auditorias na região. Para ele, além de a certificação ser benéfica ao consumidor, fortalece a relação com os produtores e os estimula a buscar um patamar de qualidade mais alto. “Hoje os produtores já reconhecem que têm condições de transacionar com outras empresas.”
Outro caso é o da Nespresso, que faz parte do portfólio do Grupo Nestlé e comercializa máquinas e cápsulas de café expresso. A marca decidiu criar seu próprio processo de verificação, ao constatar que não havia um sistema que atendesse os requisitos de qualidade da empresa. Segundo Guilherme Amado, atual gerente de café verde da Nespresso, a prioridade é unir a verificação da qualidade do café e estimular boas práticas socioambientais.
Por isso, segundo ele, foi criado o AAA Sustainable Quality Program (Triple A), que se vale de auditoria e visitas técnicas para verificar a produção de café. São analisados aspectos ambientais (como a água utilizada), aspectos sociais e trabalhistas, econômicos e operacionais (como a produtividade), entre outros. “A rastreabilidade conta a história da vida de um produto”, diz.
Em 2016, 2.563 fazendas passaram pela avaliação do programa, de acordo com o Relatório Nestlé na Sociedade. O gerente ainda frisa que, por meio da rastreabilidade, é possível enxergar toda a cadeia e oferecer garantia ao consumidor, que está cada vez mais exigente. O processo de certificação de produtores surgiu em 2009 por demanda dos consumidores.
Além disso, Amado entende a certificação como uma ferramenta para melhorar a gestão, uma vez que estreita o relacionamento com o produtor e aumenta a produtividade e a qualidade.
As novas exigências do consumidor também são visíveis no setor da moda. “A conexão entre as escolhas individuais e o impacto coletivo que elas causam, seja social, seja ambiental, está cada dia mais pautada”, afirma Dariele Santos, fundadora do Instituto Alinha. Santos teve a oportunidade de conhecer a realidade e as baixas condições de trabalho em oficinas de costura em São Paulo e viu a necessidade de mudar essa situação. Para isso, criou o instituto, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho e vida de costureiros de pequenas oficinas.
O Instituto Alinha é um negócio social que atua na cidade de São Paulo assessorando as oficinas para que tenham condições dignas de trabalho, sem cobrar por esse serviço. Além disso, atua como uma ponte entre as oficinas e as marcas interessadas em pagar preços justos e praticar prazos exequíveis. As marcas, por sua vez, financiam o Instituto ao adquirirem planos para terem acesso ao banco de dados de oficinas do Instituto e a etiqueta Alinha para afixarem em seus produtos, garantindo a procedência ao consumidor final.
Como combater a desconfiança
Por trás da busca por selos está uma questão mais profunda: combater a desconfiança. As pessoas precisam de garantias para acreditar no que é ofertado. De acordo com a filósofa irlandesa Onora O’Neill, autora do TED Talk O que não sabemos sobre a confiança, “na cultura ocidental, e em particular desde a revolução das comunicações, temos muitos exemplos de comportamentos que não eram dignos de confiança e por isso foram introduzidas mais regulação, mais prestação de contas e maior complexidade”.
“A sociedade da transparência é uma sociedade da desconfiança (Misstrauen) e da suspeita (Verdacht) que se baseia no controle em virtude do desaparecimento da confiança. A forte e intensa exigência por transparência aponta justamente para o fato de que o fundamento moral da sociedade se tornou frágil, que valores morais como sinceridade ou honestidade estão perdendo cada vez mais significado.” Sinopse do livro Sociedade da Transparência, de Byung-Chul Han
Pesquisa de 2014 do World Values Survey aponta o brasileiro como um dos povos mais desconfiados do mundo, ocupando a 55ª posição entre 60 países pesquisados. Quando questionados sobre as opções de confiar na maioria das pessoas ou ter de ser muito cuidadoso com elas, somente 7,1% dos brasileiros se identificam com a primeira.
A pesquisa Latinobarómetro de 2017 corrobora essa informação, ao apontar que, de todos os países latino-americanos, o Brasil tem a menor taxa de confiança, com 7% dos brasileiros confiando na maioria das pessoas. Essa posição contrasta com o fato de que, de acordo com a World Values Survey, 93,2% dos brasileiros veem a si mesmo como alguém geralmente confiável.
A pergunta que se coloca é: qual garantia é suficiente para conquistar a confiança dos consumidores? Em entrevistas realizadas pela reportagem com consumidores ou não de alimentos orgânicos ou outros produtos com selos socioambientais, percebeu-se que há diferentes graus de confiança. Como aponta O’Neill, “na vida real, colocamos a confiança de um modo diferenciado”. Existem aqueles para quem a palavra da pessoa basta, até os que não confiam nem mesmo nas regulações e prestações de conta.
No primeiro grupo está Mariana Cüry, a consumidora da feira de orgânicos do Ibirapuera citada no início desta reportagem. Conhecedora de cada barraca e de praticamente todos os produtos oferecidos, a presença do selo não faz diferença na sua escolha de compra. Ela acredita que os feirantes dizem a verdade.
Outro grupo de consumidores é formado por aqueles que buscam o selo como garantia. Maria Eduarda Loureiro é uma dessas pessoas. Ela conta que só consome orgânicos no supermercado e que toma como referência para sua escolha a existência ou não do selo “Produto Orgânico Brasil”.
De acordo com pesquisa do Organis, realizada em 2017, em nove capitais brasileiras, apenas 8% dos consumidores sabe que o produto é orgânico através do selo, enquanto 37% se informam por informações na embalagem e 27% nos locais de compra. Para 86% dos pesquisados, o selo “Produto Orgânico Brasil” é mais confiável que outras fontes de informação sobre os orgânicos.
Os produtores também consideram a presença do certificado importante para transmitir confiança. O presidente da Associação de Produtores e Produtoras Rurais do Campo Limpo (Aprocamp), Valdir Ataíde Mateus, conta que a perda do selo na produção de orgânicos do interior do Pará, em decorrência de uma mudança na forma de realização da auditoria, foi motivo de grande descontentamento para toda a associação. “Não deixamos de produzir o orgânico, mas como vamos provar que o jambu é orgânico se não temos certificado? É o mesmo que eu ser motorista e não ter a carteira!”. Assim, com a perda do selo, a relação de confiança com o consumidor foi afetada.
O grupo restante é dos que não confiam nem mesmo nos selos. Márcio Hamashira, que frequenta feiras de orgânicos há três anos, é um deles. “Eu particularmente não acredito que é orgânico”, diz ele. Para ele, essa desconfiança vem “do povo brasileiro, que em geral quer levar vantagem”. Ele desconfia que empresas utilizem agrotóxicos, mas falam que os produtos são orgânicos. Para Lívia Menezes, a desconfiança em tudo é um problema do Brasil de hoje. “A gente não confia mais em nada, não confia nas instituições, não confia na política, não confia nas pessoas.”
O consumidor Sérgio Pileggi apresenta um outro ponto. Para ele, o fato de existirem diversos selos de certificações socioambientais faz com que o consumidor se confunda e não saiba qual é o mais confiável. Mas concorda que exista uma desconfiança generalizada nas pessoas e nos processos. Para ele, escândalos como o da Carne Fraca alimentam esse descrédito, pois reforça que os processos no Brasil estão sujeitos à fraude. Hamashira, concorda e pontua: “Nada impede que não se tenha um ‘Orgânico Fraco’. Eu não confio no ser humano que está certificando”, diz.
Para reduzir a desconfiança, o blockchain pode servir como uma solução. por meio dessa tecnologia, o consumidor é capaz de acompanhar toda a cadeia de produção. André Salem, especialista em blockchain, cita o exemplo do Walmart, que, em conjunto com a IBM, está aplicando um QR Code nos seus produtos. Isso permite ao consumidor ler o código de barras pelo smartphone e visualizar toda a cadeia de produção da mercadoria.
A empresa de software Provenance também promove iniciativa similar. O consumidor entra no site da empresa, digita um número de identificação que está nos produtos e tem acesso ao histórico que a Provenance fornece através de uma parceria com os produtores que aderiram ao blockchain. Entre as informações às quais os consumidores têm acesso, estão a data e o local de produção, além da quantidade produzida.
A inovação trazida pelo blockchain tem grande chance de ser vista como benéfica. A pesquisa do World Values Survey aponta que 70,9% dos brasileiros acham que o desenvolvimento tecnológico, de forma geral, traria benefícios ao dia a dia. Esse número é maior do que o de países como Estados Unidos, (48,9%), Argentina (47,1%), Chile (50%), África do Sul (46,9%) e Suécia (46,3%).
A aplicação do blockchain, entretanto, divide a opinião de consumidores. A consumidora Lívia Menezes, por exemplo, diz que teria grande interesse em saber a origem dos produtos que compra através de um QR Code ou site. “A partir do momento que temos um aplicativo [que rastreia a origem dos produtos], gera mais segurança, com certeza”, diz.
Maria Eduarda aponta que ter acesso à origem dos produtos seria muito bem-vindo, mas questiona se os consumidores realmente teriam interesse nesse tipo de tecnologia. Ela sugere que as informações passadas ao consumidor não deveriam ser na forma de um documento, mas sim de um vídeo ou imagem, que costuma gerar mais confiança. Menezes pontua que “se for prático, as pessoas gostariam”. Já Hamashira diverge das duas. Ele questiona se o preço de produtos certificados, como os orgânicos, que já é mais alto, não aumentaria ainda mais, além de alimentar a corrupção.
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Texto original: p22on.com.br. Escrito por: Christopher Kapáz e Letícia Figueiredo. Compartilhamos ideias que acreditamos e nos conectam com outras iniciativas. Para mais informações sobre cadeira de fornecimento sustentável e rastreabilidade, fale conosco.